segunda-feira, 16 de março de 2015

A história da Vovó Conga, contada por ela mesma

Eu tinha 14 primaveras, era uma menina feliz e filha de uma Sacerdotisa em minha Tribo. Eu também já havia sido consagrada para ficar no lugar de minha Mãe. Mas o destino já estava me preparando caminhos insondáveis. Certo dia ao acompanhar alguns amigos em uma de nossas incursões pelos arredores de nossa Aldeia, fomos capturados por mercadores de escravos.

Apesar de todas as nossas lágrimas, desespero e súplicas, os semblantes cruéis de nossos algozes, apenas respondiam quando não com escárnio, mas com violência, que na verdade era gratuita, pois já desde daqueles dias aprendemos que apanhar e ser surrado seria uma rotina pra nós, independente de estarmos submissos ou não. Não estávamos ainda a par da nossa condição, não entendíamos o que havia acontecido, só sabíamos chorar e chorar. Quando fomo levados ao grande e nefasto navio e por lá encontramos uma imensa quantidade de pessoas, na mesma situação, só então entendemos, que seríamos levados como escravos pra alguma terra distante e perversa. Ah! Quantas súplicas feitas, implorando aos nossos Deuses, senão mais a nossa liberdade, mas a nossa morte. 
A viagem obscura e terrífica então se deu (...), sem que ninguém viesse protestar por nós, sem que ninguém no mundo tomasse nossas dores. Descrever os horrores da travessia para o Brasil, seria muito difícil, pra expressar em palavras. Nos porões fezes, urina, vômitos, choros e urros de desespero. O cheiro de morte era imenso e presente... as crianças em sua maioria pereceram. Há mas a morte também havia subido os porões do inferno, então o capitão cai doente, não sabia eu falar a língua daquela gente monstruosa, mas dois negros que eram subordinados a eles, falaram próximo de mim, em um idioma que eu conhecia, que o capitão do navio também havia "empestiado", então eu criei coragem, nos meus 14 anos, e disse que poderia curar o capitão, pois sabia curar e conhecia remédios e sabia invocar os Deuses da cura. Os dois olharam-me assombrados com tal ousadia, mas talvez temendo que eles fossem os próximos a perecer da peste, então foram me levar até o capitão. "Eu sei curar o Sinhô, mas só faço se me der condições de curar e alimentar meu povo" (...)- "Negrinha atrevida" - disse ele- está bem, eu faço o acordo, mas se eu morrer, você vai ser atirada com meu corpo no mar", disse o capitão. Implorei ao Pai Obaluaiê, que aquele homem ficasse bom, e que cumprisse sua promessa, fiz tudo que sabia de meus Ancestrais e ainda o que eu já "via" e "ouvia" DELES. O capitão ficou bom, e por incrível que pareça cumpriu o acordo feito, não por bondade ou honra, mas por medo de nossos Deuses o punirem com a volta da peste. Assim, prosseguimos com menos violência, comida suficiente e porões abertos, além de água...
Sem noção daquele tempo que parecia eterno, desembarcamos na cidade do Rio de Janeiro, em condições sofridas e precárias, já em plena apatia, com os olhos desacostumados da luz do Sol, direto para um mercado de escravos, minhas crianças tão assustadas e eu sempre lhes acomodando em meus braços. No mercado fomos então vendidos, devidamente avaliados, depois ficamos ali, esperando o momento em que nossos novos "donos" viriam nos comprar (...), o destino era incerto (...), foi em um desses leilões que eu fui vendida, "negrinha esperta", dizia o mercador em sua voz nauseante (...), fui comercializada em um dia de verão, e levada pra uma fazenda de plantação de Cana de açúcar, lá meus Senhores, a Sinhá e o Sinhô, botaram-me em serviços na cozinha, mas eu dormia na Senzala, juntos com a maioria. Alguns escravos que eram juntos, tinham uma tapera de barro e palhoça, lá moravam e procriavam, muitas crianças morriam, eram dias duros de se viver. Fui começando a me adaptar e aprender a língua e os costumes por ali, pois meu nome de batismo era Muquita, esse era meu nome, como meus donos não aceitavam me chamar por meu nome, chamaram-me de Maria , e eu tudo tive que aceitar. Por ali, fui fazendo minha religiosidade, pois não esquecia e nem queria esquecer minha ancestralidade, meus Deuses...
Certo dia, o menino filho do Sinhô tinha sido picado por uma cobra, os Senhores ficaram em desespero, pois era certa a morte da criança, que já estava em delírio e dores. Eu, que já tinha fama de curandeira, embora proibida pelos senhores de fazer minhas práticas religiosas, fui chamada em um átimo de desespero. Lá chegando o Senhor disse-me que ele me libertaria caso e curasse o filho dele (...), eu então me aproximei do leito e vi a morte certa sobre aquela Criança, então arrisquei tudo mais uma vez e disse ao Sinhô, que eu curaria o menino, mas não queria em troca minha liberdade, queria sim ter liberdade pra fazer a religião e minhas curas livremente, e ainda queria ter permissão pra fazer uma cabana, no meio da Mata, pra fazer lá meus altar e coisas do Santo, o Senhor olhou pra mim e disse "negrinha atrevida", mas ele concordou (...), e assim foi, o menino ficou bom "milagrosamente" e eu pude levar a Religião ao meu povo, pura, sem matança de animais, honrando a vida e a natureza.
Os anos passaram e minha fama de curandeira corria longe , o Sinhô e a Sinhá envelheceram e eu também, morreram bem velhos, eu ficando velha também, tive muitos filhos, alguns morreram, um foi vendido sem que pudesse sequer saber...mas prosseguia cuidando de todos. O sinhozinho que eu um dia fiz a cura tirando-o da morte, já estava de cabelos brancos e tinha até neto, não era bom, era irascível e tinha muito rancor no coração. Ele me respeitava apenas porque eu o livrava de prejuízos curando os negros doentes da fazenda. Mas um dia, um de meus filhos tentou fugir, foi capturado e trazido pra servir de exemplos aos outros negros, seria surrado no tronco até morrer, eu já estava velha, mas era meu caçula, pois tive muitos até meu organismo de mulher fértil aguentar. Meu coração estava tão em frangalhos, eu me sentia assim pensando em nossa Senhora quando viu o seu amado filho na Cruz, o que ela não daria pra estar no lugar dele? então foi assim que foi nascendo a ideia...fui até o Sinhô, e disse pra ele assim " Meu sinhôzinho, em lugar de meu filho, ponha eu no tronco e me deixe morrer lá...no que ele então retrucou -"ora, mas não foi você velha atrevida que fugiu, o castigo tem que ser exemplar, senão os outros farão a mesma coisa". Então eu disse assim, mas se eu morrer no lugar do meu filho, o Sinhô pode lucrar, pois já estou velha e ele é jovem, pode trabaiar muito ao Sinhô." " eu já estou no fim da vida , não me demoro mais mesmo, se não for assim, vou morrer cobrando do Sinhô isso, pois sou feiticeira", o Sinhô empalideceu, e então com raiva postou-me ao tronco, aonde eu fui atada e então a chibata rasgou a carne da Preta, com sangue e dor, eu me despedi dessa vida carnal, feliz por tudo que passei...depois de tantos anos, eu entendi finalmente porque eu tinha saído de minha terra África, eu tinha que trazer a benção da Religião de nossos Ancestrais aos meus, fiz tantos filhos no Santo, ensinei, abençoei, e sempre agradeci, assim no tronco, eu antes abençoei todos os filhos e aos meus de carne, ao meu filho de sangue que fugiu, lhe dei meu Decá, ele seria dali em diante o Sacerdote. Saravá da Preta Velha Maria Conga. Salve as Almas.

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